terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Sapatos

Sentou-se na cama e puxou o par de sapatos novos que comprara no dia anterior. Como eram bonitos, lustrosos e sem nenhuma imperfeição. Calçou as meias e antes de enfiar o pé esquerdo no calçado parou. Massageou o mindinho, ainda um pouco dolorido, e sorriu: “você não se machucará mais”, pensou feliz.
Enfim colocou o sapato no pé, perfeito. Agora poderia caminhar até o trabalho sem querer arrancar o próprio dedo. Entretanto, havia uma sensação estranha. Coçou a cabeça encabulado e foi se lembrando do antigo par de sapatos.
Estavam velhos e desgastados, nem o engraxate conseguia disfarçar-lhe os anos de uso. Pior, por um tropeço na rua, teve de mandá-los a um sapateiro para que os consertasse. Voltaram, mas, por descuido do artesão, o pé esquerdo passou a apertar-lhe o mindinho.
Tentava ignorar o fato, e o fez por meses. A dor se tornou uma rotina de seus dias dando espaço, inclusive, para assunto em seu círculo social íntimo. Era quase como se ela sempre houvesse existido, uma dor cultivada com esforço e muxoxos. Parte de seu ser, um lembrete pra que soubesse que ainda estava vivo – afinal de contas, se sentimos dor é porque ainda existimos, não?
Seguiu calçando o outro pé, levantou-se e deu alguns passos. Quanto conforto... tanto que lhe causava incômodo: “que diabos...!”, praguejou mentalmente. Sonhara por todo aquele tempo livrar-se da dor que sentia no dedinho e agora, finalmente conquistado seu intento, um grande desconforto interno lhe consumia. Do que iria reclamar? O que iria lembrá-lo que ainda está vivo?
Tanto tempo havia se dedicado ao incômodo que lhe parecia muito estranho viver sem ele. Ficou parado, de pé, no meio do quarto – o que fazer? 
Sentou-se na cama, arrancou os sapatos novos e tateou embaixo da cama em busca dos velhos pares. Calçou-os, primeiro o pé direito – inda cômodo –, depois o esquerdo. Sentiu uma leve pontada no dedinho, como de costume. Abriu enorme sorriso ao colocar-se de pé e sentir que a leve dorzinha continuava lá.
“Amanhã começarei a usar os novos”, pensou enquanto empurrava-os, dentro da caixa, para o canto debaixo da cama. E partiu, murmurando algo sobre o mindinho.

2 comentários:

  1. curti a metáfora.

    (só uma obs: concerto = música. conserto = arrumar) conSerta aí. ;)

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